25 de abr. de 2013

Aristóteles



Aristóteles nasce em Estagira, 384 a. C. e vem a falecer em Cálcis, em 322 a. C. Filho de Nicómaco, médico de Amintas II, rei da Macedónia, Aristóteles seria preceptor do neto deste, Alexandre Magno. Discípulo e amigo de Platão a quem se diz teria abandonado por amor da verdade (amicus Plato sed magis amica veritas), virá a fundar o Liceu, em que, segundo reza a tradição, dava lições enquanto passeava – peripatético, pois. Não parece que De Gaulle tivesse razão ao pressentir o sopro filosófico do Estagirita em cada coquista do jovem Imperador…Pelo contrário, contristado com os ímpetos imperiais de Alexandre, retira-se para Atenas. Após a morte deste, é acusado de ser partidário dos Macedónios, e perseguido, tal como já o havia sido Sócrates. Ao contrário do filósofo mártir, e para evitar mais um atentado contra a Filosofia, exila-se em Cálcis, onde morrerá, porém, um ano depois.
O quadro de Rafael, A Escola de Atenas, elucidar-nos-ia magnificamente sobre o carácter da filosofia de Aristóteles. Neste, ele olha a terra, enquanto Platão contempla o céu. Aristóteles é um espírito enciclopédico, uma mente poderosa, mas sempre preocupada com o real. Diz-se anedoticamente que passou boa parte da lua de mel catando conchinhas para os seus estudos científicos. Nada do humano lhe foi alheio. Alguma incompreensão relativamente ao filósofo parece dever-se ao abuso que, durante alguns momentos de decadência, os seus seguidores fizeram da sua doutrina, endeusada como autoridade intocável. Todavia, não se pode assacar tal culpa àquele que o próprio Augusto Comte apelidou de “filósofo incomparável”. Não deixa de ser curioso verificar que os críticos de Aristóteles por errado, e desligado da Natureza e do mundo, acabam por preferir o especulativo Platão, o utopista da República. As Éticas a Nicómaco, Retórica Política, além de outras obras, incluem luminosas passagens sobre o Direito e a Política. Não sendo jurista – não se pode mesmo dizer que houvesse verdadeiros juristas antes do ius redigere in artem romano, sob inspiração aristotélica, aliás - , Aristóteles compreendeu perfeitamente a essência do Direito, e o seu contributo tem nestas áreas um valor inestimável – sempre apto a novas releituras e diferentes descobertas. Ao pensar as relações jurídicas como relações de proporção (nem desigualdade, nem igualdade matemática), ao entender o discurso jurídico como uma dialéctica, ao dividir a Justiça em justiça geral (moral, política, etc.) e justiça particular (especificamente jurídica, de atribuição a cada um do que é seu), Aristóteles clarificou os pro­blemas e desbravou a floresta inicial, permitindo depois aos Romanos a construção do belo edifício do Direito. Ao mesmo tempo que delimita o Direito, Aristóteles dá os primeiros passos para a autonomização da Política: claro na divisão das formas do governo, agudo já antes de Maquiavel sobre as formas de preservá-las e quanto à corrupção que as espreita, e, sob tudo, profundamente atento às várias formas de ser do homem, à etiologia humana – pois esse é o fundo das suas Éticas: os modos de o Homem ser…
2. Evolução, Edição e Metafilosofia
Rios de tinta se gastaram e continuarão presumivelmente a gastar-se com a intenção de reconstituir o verdadeiro pensamento de Aristóteles, com o fito de surpreender as diversas fases por que terá passado, de destrinçar as obras próprias das apócrifas, de refazer as actualmente indiscutidas, reordenando os respectivos livros, e até, dentro de alguns destes, alterando a ordem dos capítulos. Aristóteles é assim um enorme puzzle de múltiplas incógnitas. Inesgotável, mas, em grande medida também, desesperante. Para o nosso intento actual, não importam a maioria dessas questões, na verdade externas, hermenêuticas, arqueológicas, ou autorais. Não importa mesmo (ao menos não importa tanto assim) a pessoa histórica de Aristóteles . O mais relevante para nós é um corpus textual que, embora com fortuna de recepção desigual (porque, naturalmente, mais ou menos actual numas e noutras épocas), se foi transmitindo ao longo dos séculos, e constitui inegavelmente não só uma importante reflexão sobre estas matérias aparentemente (ao menos) do punho de um grande filósofo, como também (e sobretudo) é em si mesmo digno de reflexão ainda hoje: pode servir para uma leitura e uma resposta aos desafios do presente.
Esta intenção “utilitarista” hoc sensu não repugnaria, contudo, ao Estagirita, que expressamente afirma o intuito prático deste trabalho, o qual, afirma, “de nada serviria” se não ajudasse a tornar-se “mais virtuoso”. As finas e penosas análises dos filólogos e outros exegetas sobre os múltiplos problemas que povoam as obras principais que respondem à questão ética e política em Aristóteles, permitem-nos sem dúvida ficarmos mais avisados contra a visão ingénua de um autor que houvesse sido simplesmente e toda a sua vida “realista”, posando para a posteridade com a figura que lhe dá Rafael, no fresco da dita Escola de Atenas, apontando o solo das coisas concretas. Advertem-nos sem dúvida para a heterogeneidade e até pelo menos aparente contradição entre materiais reunidos tradicionalmente na mesma obra. Iluminam-nos quanto à provável inautenticidade ou carácter apócrifo de alguns textos (como a Ética a Eudemo e a Grande Ética), que assim – e também porque nada de verdadeiramente novo nos trazem – eliminamos do terreno da nossa investigação. Apontam-nos continuidades e descontinuidades, semelhanças e dissemelhanças que podem sugerir outra ordem na leitura dos textos, podendo fazer-nos suspeitar de cronologias de escrita diversas da normal narratividade do princípio/meio/fim, e dando-nos a entender que tanto editores pósteros como o próprio Estagirita teriam procedido por camadas de textos, por estratificações, nem sempre em grande diálogo entre si – o que potencia possíveis contradições, e inevitáveis repetições, nem sempre sendo ajudado pelas frequentes observações “de ordem” ou de “encadeamento” do filósofo. Tudo isto é verdade.
Mas há nestas verdades um bom conjunto de problemas.
Se o percurso intelectual de Aristóteles permite detectar uma fase mais idealista, e uma fase mais realista, nem por isso as interpretações sobre a ordem destas fases são unânimes. Se para um clássico como Werner Jaeger o normal é que, após vinte anos de Academia platónica, Aristóteles viesse ulteriormente a ganhar voos de distanciamento (e ainda assim gradual e mesclado) face ao génio do seu mestre, passando do platonismo ao verdadeiro aristotelismo, já Ingemar Duering afirma precisamente uma evolução cronológica contrária: a uma primeira fase de rebeldia juvenil contrapõe uma maturidade de encontro com o idealismo do mestre. E afirmará mesmo uma unidade de um Aristóteles que jamais teria embarcado nos excessos idealistas de Platão, antes tendo sempre em si coexistido o interesse especulativo e a vocação prática, o metafísico e o empírico.
François Nuyens, por seu turno, considera que a divisão em três períodos, começando na receptividade a Platão para culminar numa maior independência, seria a evolução mais compatível com a psicologia do Estagirita. O mais iconoclasta de todos os autores será certamente Zürcher, que reconhece em Aristóteles um simples platónico, atribuindo ao seu discípulo Teofrasto (esse sim anti-idealista) ¾ dos tratados correntemente tidos por aristotélicos. Perante tais contradições, não deixa de ser sedutor pensar que não só Platão teria experimentado essa angústia do filósofo, ou “tragédia do filósofo”, que o distingue do dogmático, e que o obriga a evidenciar diferentes pontos de vista, expondo o seu pensamento na dúvida e na tensão. Só que, enquanto do mestre da Academia dispomos de um abundante material de diálogos, caixa de ressonância desse discurso problemático a muitas vozes, o facto de os diálogos de Aristóteles se terem perdido prejudica-nos essa dimensão dialéctica e auto-reflexiva, dando-nos por um lado uma geral aparência de univocidade (que para os mais desatentos se poderia tá confundir com dogmatismo…), e por outro, vendo mais no pormenor, revelando-nos o que consideramos serem contradições…ou fruto da evolução de um pensamento.
Porque não, pois, um Aristóteles também com dúvidas, hesitações, e em que no limite poderiam até coexistir realismo e idealismo?
Não nos preocuparemos, assim, com o apuramento microscópico de verdades e veracidades que restituam o que é do autor, ou o que é o seu vero pensamento. Como avisadamente acaba por decidir Pierre Pellegrin, é preferível, neste caso, a douta ignorância à falsa ciência : e muito facilmente caímos nesta última… Como afirmou este autor para as Políticas, depois de haver desbastado largas florestas de estudos eruditos (e contraditórios) sobre a matéria, fomos levados a concluir que, quer nas Éticasquer nas Políticas,  a consideração dos textos canónicos, traz frutos. Sobretudo e antes de mais o de se evitar essa metafilosofia que evita que entremos no sumo da matéria. Resolvam-se como se resolverem os graves problemas de atribuição e datação, o certo é que, pondo de parte o que é mais discutível, as Éticas a Nicómaco e asPolíticas constituem inegavelmente dois excelentes monumentos de formação cívica (ética e política), cujas lições merecem uma apreciação ainda hoje.
3. Nomos, Ethos, Telos – Normatividade, Etiologia, Teleologia
Sobre as lições a tirar da ética e da política Aristóteles importa antes de mais fazer algumas distinções. Uma coisa, desde logo, seriam as propostas éticas e políticas do autor, e outra a nossa lição a partir do diálogo com estas, que apenas podem funcionar como sugestão ou inspiração. Mas outra questão mais complexa se nos coloca. Terá Aristóteles tido realmente um intuito prescritivo ou normativo ao escrever as suas éticas e políticas?
Evidentemente que sempre se escreve ou para comandar ou para ser amado, e não sendo certamente este último o intuito do Estagirita, haveremos sempre de ver no que escreveu um fumus de intenção directiva. Mas há directividades e directividades… Normatividades e normatividades…
Um dos objectivos de Aristóteles poderia bem ser o da descrição mais ou menos desapaixonada (como a dos animais nas suas biologias) de tipos de homens e de tipos de constituições. Esta seria a perspectiva etimologicamente “ética” (de ethos, descrevendo, como que medicamente, a etiologia, o modo de ser). Contudo – e permitimo-nos voltar à nossa hipótese – Aristóteles não passara impunemente vinte anos com Platão. Aliás, tal poderá nem ser uma influência platónica, mas uma característica do seu próprio ser. E assim, não deixa de, por entre as descrições de conceitos constitucionais mais ou menos essenciais, para além da explicitação dos diferentes vícios, exageros face a uma virtude mediana, apontar por um lado para uma Constituição ideal, excelente, e, por outro, para a virtude.
Realista, por vezes cínico, alguns dirão até aqui e ali “maquiavélico” avant-la-lettre, Aristóteles não abandonará por completo os ideais. Um lugar paralelo poderemos encontrar na análise da Poética. Também este livro foi esquecido durante a Idade Média (também durante ela foi tido por inactual), e também o Renascimento o recuperaria com a pretensão de nele ver o cânone da clássica literatura que os tempos ditos de trevas teriam esquecido. O Romantismo oitocentista desferir-lhe-ia, por subordinado aepos diverso (mais barroco), um novo golpe de olvido, mas já no séc. XX (não porque clássico, mas decerto porque anti-romântico) se recuperou. Não, todavia, como regra de oiro de uma perfeição antiga que já poucos convenceria, mas como quadro descritivo dos modos de ser literários.
A verdade é que, no início deste livro, logo o Estagirita anuncia o seu intuito: falar do que faz os textos literários e o que os torna excelentes. É, mutatis mutandis, a mesma coisa que, na prática, é levada a cabo nas Éticas a Nicómaco para as virtudes, e nas Políticas para as constituições. Esta ambiguidade entre o descritivo e o normativo (afinal entre o ser e o dever-ser, que na metafísica de Platão se encontravam) acompanha este Aristóteles da filosofia do Homem (anqrwpina filo-sofia). Em todo o caso, a empresa aristotélica parece desejar uma certa purificação e autonomia do ético-político face ao metafísico. O que, sendo um ponto a favor da não-normatividade, todavia a não descarta por completo, já que, além do mais, um “dever-ser” pode ter outras radicações além da metafísica. Desde logo, importa a Aristóteles certamente essa normatividade da educação, que segundo ele (lição admirável para o nosso tempo!) deve ser a primeira preocupação dos legisladores.
Talvez mais luz se projecte sobre a empresa aristotélica se aos paradigmas da normatividade e da simples descrição substituirmos o da teleologia ou finalidade. Não visa o filósofo na sua ética ou na sua política um bem substancial, absoluto, mas um bem que contribua para um fim profundamente humano: a felicidade. Da mesma sorte, a constituição excelente que se busca na política não se dirige a uma utopia sem lugar, sem povo, sem clima, sem solo, sem vizinhança, mas se almeja para cada comunidade concreta a constituição que melhor se lhe adeque.
4. Uma Filosofia do Homem: filosofia prática
Independentemente da presença persistente, mais ou menos subtil, do platonismo e do respectivo “idealismo” em Aristóteles, como aflorámos já, manifesta na não demissão deste quanto à procura de uma constituição excelente ou “estado ideal” (aristh politeia), a verdade é que o intuito manifesto e declarado do autor na Ética a Nicómaco é prático, e não de ''especulação pura''. Acresce que a conexão entre as éticas e as políticas é pelo próprio Aristóteles expressamente sublinhada: designadamente nos capítulos primeiro do Livro I e final do Livro X (o último) da Ética a Nicómaco. Procura-se na ética o máximo Bem. Mas ele depende da ciência suprema e “arquitectónica” por excelência, a Política, à qual todas as demais se subordinam, e que de todas as demais se serve numa Cidade.
Acresce que, num mundo em que a maioria esmagadora dos homens se encontra submetida às paixões, a argumentação é frustre, e apenas se poderia acreditar no efeito formador de uma educação para as virtudes, numa pólis dotada de leis justas. É para tanto necessário estudar a ciência da legislação, que para Aristóteles é uma parte da Política. As linhas com que este tratado encerra são mesmo um convite ao estudo da Política.
Por tudo isto, também se haverá de considerar a démarche politológica (hoc sensu) de índole prática e não simplesmente especulativa. São ambas exemplos de tecnh, ouarte: englobando quer a dimensão teórica ou conceptual, quer a dimensão fáctica ou agente na vida e no mundo. Uma filosofia prática, pois, esta anqrwpina filosofia, em que uma Política prepara as leis e uma ordem que permita a educação nas virtudes, caminho para a felicidade dos cidadãos. Se a maior felicidade é a vida contemplativa racional, também de algum modo o “andar a procurá-la” (para lembrar Almada Negreiros) na vida política (de acordo com as virtudes) pode constituir um segundo nível de felicidade.

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